domingo, 10 de junho de 2007

Formas na chuva

A chuva surgiu, reclamando para si mais uma semana, envolvendo todos numa atmosfera nublada, onde tudo parecia preto e branco, coberto de cinzas.
As formas tornaram-se vultos, os sons tornaram-se estática, as memórias ficaram turvas. À medida que os seus olhos aclararam, empalideceu, resignou-se ao peso da água nos seus ombros, curvando-o, subjugando-o, tornando-o apático...
Enquanto os olhos perdiam a cor e a voz se diluía, os seus ouvidos foram invadidos pelo ensurdecedor ruído do desespero. A fragrância desapareceu para dar lugar ao fétido odor da inércia.
"Mendiga os teus sonhos."
Lembrava-se destas palavras há 13 anos. Haviam sido atiradas a um dos seus esporádicos lampejos de auto-estima, um frágil castelo de cartas que voltou a ruir nesse momento.
Sentado, observava o percurso das gotas no vidro da janela ao seu lado enquanto pensava nestas simples palavras. Uma simplicidade perfeitamente real e destrutiva.
Suspirou. A voz expandia-se dentro do seu crânio, consumindo todas as memórias de uma vida, como um clarão de negritude que tudo absorve.
Levantou-se, pagou o café e dirigiu-se à saída. Parou frente à porta durante uns breves instantes enquanto procurava o maço de tabaco no bolso do casaco. Acendeu um cigarro e abriu finalmente a porta envidraçada para enfrentar o dilúvio no exterior.
Caminhava de olhos postos no chão, por entre a enchente de chapéus de chuva que coloria as ruas da cidade em tons berrantes. Desprotegido e resignado, havia já alcançado a indiferença perante as chuvas torrenciais que se abatiam sobre si.
Perante a escura cortina de água, os comuns transeuntes tinham dificuldade em ver o caminho, mas não ele. Não, ele já se tinha adaptado, a sua visão atravessava a espessa e ininterrupta parede aquosa. No caminho, parou para oferecer um cigarro a um vagabundo que utilizava a ponte do comboio como abrigo.
"Toma, acho que precisas bem mais do que eu. Dar-te-ia também as minhas asas, se não estivessem presas nas minhas costas."
Não deu tempo ao sem-abrigo para que este lhe conseguisse demonstrar a sua estranheza perante tal afirmação. Já tinha virado a esquina quando o eco das suas palavras reverberava nas entranhas do desafortunado ser.
A porta da casa onde pernoitava não fechava, não tinha sequer fechadura. Entrou no prédio insalubre, ignorando o drogado que se injectava deitado no chão.
"Enfim, cheguei", suspirou...