quarta-feira, 25 de abril de 2007

Penas

"Pedro! Vem aqui depressa!" Segui a ondulação entusiasmada da voz da minha mãe até à sala para me deparar com uma pomba branca que tinha acabado de entrar pela janela escancarada.
"Podemos ficar com ela, mãe?" perguntei com a vontade da criança que era.
"Não, filho. Elas não se dão bem dentro de casas."
Assenti. Tinha a percepção que aquela criatura não tinha um carácter doméstico.
Ajudei-a a afugentar o bicho, que olhava para nós curioso e sereno.
Hoje pergunto-me se não terá tido algum significado, algo relacionado com esta casa, onde, com alguns contratempos, temos tido a porção de felicidade que procuramos uma vida inteira.
Agora, na hora de pensar em mudanças, surgem no pensamento lembranças a que nunca dei muita importância. O quarto que partilhava com os meus irmãos, a janela onde observava o Sol a deitar-se por trás do Monsanto, a mesa em cuja cabeceira se sentava o meu avô pelo menos uma vez por ano, com uma postura imperial e um sorriso magnânime, o regente do nosso reino de orgulho...
À medida que observo a nossa futura casa penso se algum dia também entrará aí uma pálida pomba detentora de toda a tranquilidade da vida, à procura da criança que já não o é e não o voltará a ser.
Aquela criança que só existe interiormente, nas recordações, nas fotografias das estantes e nos olhos dos meus pais e pergunta, ansiosa, "quando nos mudamos?"
Aquele projecto de pessoa que agora se inquieta com o forte aroma que reina na nova casa, o aroma intenso e envolvente que emana da solidão...

sábado, 21 de abril de 2007

The Urbana Cycle

Quando cheguei, o Jay estava a acabar de enrolar um dos seus famosos charutos, daqueles capazes de adormecer um elefante hiperactivo. Sentei-me ao lado dele e sorri.
"Cheira-me que vais ter de fumar isso tudo sozinho..."
"Não me parece", respondeu, "o Chico está aí a chegar, liguei-lhe depois de ter falado contigo".
"Pensava que ele ainda não tinha chegado a Lisboa".
"Chegou há bocado".
Acendi um cigarro. "Já te arranjei as cordas do 'Graham Cleese'. Está como novo."
"Obrigadão. Quanto te devo?"
"Deves-me a promessa de seres tu próprio quando estivermos a consumir o palco na próxima quinta-feira".
"Temos concerto na próxima quinta?"
"Porque achas que o Chico chegou hoje e a 'Bruce Vega' está toda polidinha? Às 21 horas de quinta-feira subimos ao palco do Garage".
"Garage? Como conseguiste isso?"
"Como conseguimos, queres tu dizer. Parece que um gajo de lá nos viu há duas semanas no Zé dos Bois. Ligou-me há dois dias para fazer a proposta. Parecia entusiasmado."
"A Lena já sabe?"
"Não, vamos ligar-lhe daqui a pouco. Era para ser surpresa, mas tive de dizer antes ao Chico para ele se meter a caminho."
"Portanto, estamos quase a ser enormes...?"
"Parece que sim..."
Nesse momento, apareceu o Chico.
"Então seus merdosos?" Era o seu cumprimento habitual. "Já falaram com a Lena?"
"Vamos falar agora", afirmei, "trouxeste a carrinha? Temos de ir buscar a 'Madre Teresa' a casa dela.."
"Trouxe, Zé. Jay, esta merda 'tá a arranhar pra caralho!"
O Jay riu-se. Ele fumava canhões daqueles sozinho todos os dias. Ninguém compreendia como aguentava, mas a verdade é que isso não impedia o seu virtuosismo cada vez que agarrava no baixo, no seu 'Graham Cleese', ornamentado com autocolantes do Graham Chapman e do John Cleese - Monty Python.
O Chico era o mais elaborado, tocava orgão - o seu 'Pedro, O Grande' - e guitarra, ainda por baptizar. A Lena tinha posto o nome de 'Madre Teresa' à bateria dela, simplesmente porque sim, e foi assim que ficou. A minha guitarra negra tinha duas imagens, uma do Vincent Vega, outra do Bruce Lee, fornecidas por dois amigos, os dois maiores fãs dos The Urbana Cycle.
Éramos todos amigos de infância, começámos nestas andanças aos 12 anos, quando me deram a minha primeira acústica. O Jay achou piada e arranjou uma para ele. Baptizámo-las de 'Optimus' e 'Prime', respectivamente, em homenagem à personagem dos 'Transformers'. Era um pouco infantil, o que se adequa perfeitamente à nossa personalidade. Nessa altura dávamos concertos para o Chico, para a Lena, para o Johnny e para a Cat. Mais tarde, por volta dos nossos 15 anos, a Lena já nos acompanhava em djambé e o Chico tocava connosco no piano da sua avó, que lho deixou, mais tarde, no testamento. Três anos mais tarde adquiriu o 'Pedro, O Grande' porque queria experimentar outro tipo de sons. Ele sempre foi o mais versátil de todos, aprendeu a tocar guitarra aos 16 anos, por ter achado piada. Quando fez 18 anos, eu e o Jay oferecemos-lhe uma 'Jackson' que havíamos comprado em segunda mão.
"Agora tens de a baptizar", dissemos-lhe, quando lha entregamos.
Ainda com expressão de idiota, o Chico, que passava a vida entre o Porto, onde o pai vivia, e Lisboa, onde a mãe, Dona Antónia, residia, na casa ao lado da minha, declarou necessitar de pensar num nome relacionado comigo e com o Jay. Aceitámos isso e fomos tratar de arranjar um amplificador novo.
Aos 17 anos a Lena investiu a totalidade do ordenado do part-time que teve durante o Verão numa bateria. "A minha 'Madre Teresa'!" exclamou quando a viu pela primeira vez e se apaixonou. Como o dinheiro não chegava, o Chico negociou o preço com o vendedor e pagou o restante em volumes de tabaco que tinha trazido dos Açores. Passou um mês inteiro a cravar-nos cigarros. Ninguém se importou, partilhar tabaco sempre foi algo bastante comum no nosso grupo.
No meu 19º aniversário, o Jay e o Chico apareceram-me em casa com um poster espectacular, com um fundo castanho, traços em amarelo com a expressão "The Urbana Cycle" escrita em tons de laranja no centro. "Pronto, agora somos pseudo-oficialmente uma banda", rematou o Chico, num tom jocoso. The Urbana Cycle era uma expressão sem qualquer significado, que eu costumava escrever nos meus cadernos. Não havia uma única sebenta minha de letras de músicas onde não constassem essas três palavras, ordenadas sempre dessa forma. A Lena também gostou. O poster tinha sido feito pela Cat, tal como os autocolantes do Bruce Lee, do Vincent Vega, do Graham Chapman e do John Cleese. Ela trabalhava em artes gráficas, na empresa do seu irmão mais velho e era excelente nisso. O seu irmão, já com bastante experiência no ramo, nunca se cansou de a elogiar e nunca deixou de assumir que ela tinha um jeito inato para aquilo. Era um irmão babado e orgulhoso dela.
Não tínhamos um vocalista designado, íamos cantando os quatro, quando as músicas não eram instrumentais. Precisávamos de alguém, eu não queria cantar, nunca tive voz para isso e odiava incorrer no risco de desafinar a meio de um concerto a sério - como seria o de quinta-feira. Sempre quis que a Cat fosse a vocalista, mas ela nunca se propôs a tal e eu não tinha a certeza se ela queria.
A Cat e o Johnny seguiam-nos desde o início. Eram os nossos fãs mais fiéis, que nos escreviam músicas de vez em quando. A nossa melhor letra foi escrita, em português, pelo Johnny. Era um poema seu, escrito durante uma aula de informática - daquelas em que não se fazia 'puto'. Ele tinha uma habilidade única com as palavras. O título custou mais a surgir que o próprio poema. "Painel Azul" acabou ele por se decidir. Não percebemos a razão, não perguntámos, limitámo-nos a apreciar. Pareceu-nos brilhante, sem sabermos porquê.
Agora estávamos na casa dos 23/24 anos e já nos conhecíamos musicalmente como as palmas das nossas mãos. Apesar de não serem membros 'oficiais' da banda, a Cat e o Johnny tornaram possível a sobrevivência dos The Urbana Cycle.
Estávamos agora perante o nosso primeiro grande teste e eu estava certo que iríamos transcender-nos e triunfar...

Uma pequena ficção

"Se o teu ego não ocupasse toda a tua vida, talvez existisse espaço para mim". Foram estas as últimas palavras que lhe disse, no momento em que virei as costas e a abandonei. Não me seguiu, limitou-se a fitar-me, soube-o porque sentia a sua frustração nos dois pontos do meu dorso em que os seus olhos se fixaram. Não podia dar-me ao luxo de olhar para trás, continuei o meu rumo, desliguei-me da atmosfera que me rodeava ao colocar os headphones nos ouvidos. Mergulhei no autismo da música, era assim que enfrentava a possibilidade de ter cometido um erro crasso, um erro necessário, talvez. Não consentia condenar-me a mim próprio a uma existência ténue na vida de alguém.
À medida que me afastava, ia ganhando a noção de que não estava a fugir a coisa alguma, pelo contrário, estava de costas voltadas, mas enfrentava a situação, marcava a minha posição, contestava resignado.
A gravilha agitava-se debaixo das minhas solas, ao mesmo tempo que era beijado na cara pela brisa primaveril e o Sol descendente me fazia brilhar. Tinha acabado de perder algo mas sentia-me mais completo.
"Obrigado, deste-me todo este vazio para explorar", pensei em voz alta...

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Humana

Após sobreviver ao último Inverno, apercebi-me que me sentia menos humano, não num conceito idiota de ficção científica - que eu adoro, não de uma forma negativa - isso dependerá da perspectiva - mas sim de um prisma referente ao conceito de progresso. Mais frio, menos sensível à vivência mundana, talvez um pouco mais incorruptível, mais real. Não me refiro a um conceito de proximidade divina, refiro-me somente a uma forma mais saudável de olhar para o que tenho à frente, arrogante talvez, mas consciente. Acho que sei porquê. Afinal, não atingimos o fundo do poço sem aprender algo com isso. Posso dizer que me sinto bem comigo próprio, muito bem mesmo, como há muito não me sentia. Figurativamente falando, sinto os meus dentes mais afiados, mais fortes e mais brilhantes. Suficientemente confiante para a dentada no Mundo que me é devida, para descarnar e consumir talvez mais até que isso.
Estou certo de ter descartado toda uma aura de negritude com a qual estabeleci uma certa relação de dependência a todos os níveis, para me aproximar de um desejado e confortante estado de neutralidade. Aqui já não existe o certo ou o errado, permanece somente a verdade da existência, despreocupada e implacável. Não se pode ser julgado se não existe qualquer interesse e isso, por si só, é uma vantagem enorme. Poderão existir opiniões a questionar este estado, esta atitude, mas estamos demasiado embrenhados em indiferença para sequer notarmos. Estamos a consumir-nos a nós próprios e estamos a gostar, embriagamo-nos sem tonturas ou ressacas, e não queremos realmente saber de mais nada para lá disso, sem que, para tal, tenhamos de nos fechar ao exterior. Na realidade estou perfeitamente em sintonia com o Mundo, porque o meu Mundo sou eu e não estou minimamente interessado em conhecer os outros.
É brilhante fascinar-me comigo próprio...

sábado, 14 de abril de 2007

O que se faz às dez da manhã de um sábado?

É uma sensação estranha, acordar às dez da manhã de sábado completamente "enxuto", quando a noite de quarta para quinta havia sido a última que tinha dormido, e ontem me deitei por volta da meia noite, com dois horários laborais das 10:30 às 18:00 pelo meio. Algo falhou aqui no meio. Não sei o quê, talvez o regresso de várias sensações que pensava já ter perdido, ou o facto de, nesta altura, estar a ser assolado por uma avalanche de pensamentos que me mantém num estado de ansiedade que não faz sentido existir.
Talvez tudo isto se deva às primeiras barreiras que surgem no início da caminhada para deixar o estado da inércia, ou talvez seja somente o produto de um carácter frágil.
Tenho perfeita noção de que penso e sinto em demasia, o que torna tudo avassalador ao ponto de me deixar estático, escondido, à espera do fim da tempestade. Contudo, a tempestade não cessa completamente, toma apenas contornos menos duros. É como darmos os primeiros passos pelos escombros de uma cidade que acabou de ser bombardeada, à procura de algo, ao mesmo tempo que esperamos ouvir novamente a ensurdecedora sirene que assinalava novo raid aéreo.
Depois de tanto tempo gasto em tentativas de subjugar o domínio das sensações com o da razão, da lógica, do pressuposto "causa-efeito", encontro-me exactamento no ponto de partida, onde a teoria é magnífica e aparenta ter tudo para alcançar um sucesso já de si predestinado. Contudo, aquando da transposição teoria-prática, surgem os mesmos obstáculos já previstos no esboço teórico e, não obstante, conseguem destruir todas as bases que sustentam esta operação.
Teremos aqui um exemplo perfeito de falta de competência de quem aplica a teoria?

Acho que preciso de um café...

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Ba Da Bing!

O episódio ganhava logo mais interesse quando Tony Soprano disparava esta expressão e é assim que começa o blog: com um pontapé no traseiro para animar as hostes. É uma declaração de guerra ao estado vegetativo que vigora nesta existência contraída e consumida no seu próprio vazio - a minha existência, um mundo inerte dentro de uma caixa. Assim, este blog consistirá, supostamente, num débil rascunho de tentativas para evoluir algo que actualmente se encontra estagnado e insalubre.

Veremos onde isto me levará...