sábado, 21 de abril de 2007

The Urbana Cycle

Quando cheguei, o Jay estava a acabar de enrolar um dos seus famosos charutos, daqueles capazes de adormecer um elefante hiperactivo. Sentei-me ao lado dele e sorri.
"Cheira-me que vais ter de fumar isso tudo sozinho..."
"Não me parece", respondeu, "o Chico está aí a chegar, liguei-lhe depois de ter falado contigo".
"Pensava que ele ainda não tinha chegado a Lisboa".
"Chegou há bocado".
Acendi um cigarro. "Já te arranjei as cordas do 'Graham Cleese'. Está como novo."
"Obrigadão. Quanto te devo?"
"Deves-me a promessa de seres tu próprio quando estivermos a consumir o palco na próxima quinta-feira".
"Temos concerto na próxima quinta?"
"Porque achas que o Chico chegou hoje e a 'Bruce Vega' está toda polidinha? Às 21 horas de quinta-feira subimos ao palco do Garage".
"Garage? Como conseguiste isso?"
"Como conseguimos, queres tu dizer. Parece que um gajo de lá nos viu há duas semanas no Zé dos Bois. Ligou-me há dois dias para fazer a proposta. Parecia entusiasmado."
"A Lena já sabe?"
"Não, vamos ligar-lhe daqui a pouco. Era para ser surpresa, mas tive de dizer antes ao Chico para ele se meter a caminho."
"Portanto, estamos quase a ser enormes...?"
"Parece que sim..."
Nesse momento, apareceu o Chico.
"Então seus merdosos?" Era o seu cumprimento habitual. "Já falaram com a Lena?"
"Vamos falar agora", afirmei, "trouxeste a carrinha? Temos de ir buscar a 'Madre Teresa' a casa dela.."
"Trouxe, Zé. Jay, esta merda 'tá a arranhar pra caralho!"
O Jay riu-se. Ele fumava canhões daqueles sozinho todos os dias. Ninguém compreendia como aguentava, mas a verdade é que isso não impedia o seu virtuosismo cada vez que agarrava no baixo, no seu 'Graham Cleese', ornamentado com autocolantes do Graham Chapman e do John Cleese - Monty Python.
O Chico era o mais elaborado, tocava orgão - o seu 'Pedro, O Grande' - e guitarra, ainda por baptizar. A Lena tinha posto o nome de 'Madre Teresa' à bateria dela, simplesmente porque sim, e foi assim que ficou. A minha guitarra negra tinha duas imagens, uma do Vincent Vega, outra do Bruce Lee, fornecidas por dois amigos, os dois maiores fãs dos The Urbana Cycle.
Éramos todos amigos de infância, começámos nestas andanças aos 12 anos, quando me deram a minha primeira acústica. O Jay achou piada e arranjou uma para ele. Baptizámo-las de 'Optimus' e 'Prime', respectivamente, em homenagem à personagem dos 'Transformers'. Era um pouco infantil, o que se adequa perfeitamente à nossa personalidade. Nessa altura dávamos concertos para o Chico, para a Lena, para o Johnny e para a Cat. Mais tarde, por volta dos nossos 15 anos, a Lena já nos acompanhava em djambé e o Chico tocava connosco no piano da sua avó, que lho deixou, mais tarde, no testamento. Três anos mais tarde adquiriu o 'Pedro, O Grande' porque queria experimentar outro tipo de sons. Ele sempre foi o mais versátil de todos, aprendeu a tocar guitarra aos 16 anos, por ter achado piada. Quando fez 18 anos, eu e o Jay oferecemos-lhe uma 'Jackson' que havíamos comprado em segunda mão.
"Agora tens de a baptizar", dissemos-lhe, quando lha entregamos.
Ainda com expressão de idiota, o Chico, que passava a vida entre o Porto, onde o pai vivia, e Lisboa, onde a mãe, Dona Antónia, residia, na casa ao lado da minha, declarou necessitar de pensar num nome relacionado comigo e com o Jay. Aceitámos isso e fomos tratar de arranjar um amplificador novo.
Aos 17 anos a Lena investiu a totalidade do ordenado do part-time que teve durante o Verão numa bateria. "A minha 'Madre Teresa'!" exclamou quando a viu pela primeira vez e se apaixonou. Como o dinheiro não chegava, o Chico negociou o preço com o vendedor e pagou o restante em volumes de tabaco que tinha trazido dos Açores. Passou um mês inteiro a cravar-nos cigarros. Ninguém se importou, partilhar tabaco sempre foi algo bastante comum no nosso grupo.
No meu 19º aniversário, o Jay e o Chico apareceram-me em casa com um poster espectacular, com um fundo castanho, traços em amarelo com a expressão "The Urbana Cycle" escrita em tons de laranja no centro. "Pronto, agora somos pseudo-oficialmente uma banda", rematou o Chico, num tom jocoso. The Urbana Cycle era uma expressão sem qualquer significado, que eu costumava escrever nos meus cadernos. Não havia uma única sebenta minha de letras de músicas onde não constassem essas três palavras, ordenadas sempre dessa forma. A Lena também gostou. O poster tinha sido feito pela Cat, tal como os autocolantes do Bruce Lee, do Vincent Vega, do Graham Chapman e do John Cleese. Ela trabalhava em artes gráficas, na empresa do seu irmão mais velho e era excelente nisso. O seu irmão, já com bastante experiência no ramo, nunca se cansou de a elogiar e nunca deixou de assumir que ela tinha um jeito inato para aquilo. Era um irmão babado e orgulhoso dela.
Não tínhamos um vocalista designado, íamos cantando os quatro, quando as músicas não eram instrumentais. Precisávamos de alguém, eu não queria cantar, nunca tive voz para isso e odiava incorrer no risco de desafinar a meio de um concerto a sério - como seria o de quinta-feira. Sempre quis que a Cat fosse a vocalista, mas ela nunca se propôs a tal e eu não tinha a certeza se ela queria.
A Cat e o Johnny seguiam-nos desde o início. Eram os nossos fãs mais fiéis, que nos escreviam músicas de vez em quando. A nossa melhor letra foi escrita, em português, pelo Johnny. Era um poema seu, escrito durante uma aula de informática - daquelas em que não se fazia 'puto'. Ele tinha uma habilidade única com as palavras. O título custou mais a surgir que o próprio poema. "Painel Azul" acabou ele por se decidir. Não percebemos a razão, não perguntámos, limitámo-nos a apreciar. Pareceu-nos brilhante, sem sabermos porquê.
Agora estávamos na casa dos 23/24 anos e já nos conhecíamos musicalmente como as palmas das nossas mãos. Apesar de não serem membros 'oficiais' da banda, a Cat e o Johnny tornaram possível a sobrevivência dos The Urbana Cycle.
Estávamos agora perante o nosso primeiro grande teste e eu estava certo que iríamos transcender-nos e triunfar...

2 comentários:

Anónimo disse...

Muitooooo bom! :)

Batista disse...

O que os canhões fazem às pessoas !! Grande post. Agora é converter isto em criatividade para o Jornal, Catarino !! heheh
Ok, já estou armado em mete-nojo, mas foi para o que me deu. Ou era isto, ou ia andar a pé no tunel do Marquês. Saíste tu na rifa