terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Pink Steam

É impossível enganar-me quanto à melhor altura da nossa relação. Consiste exactamente em seis minutos e 58 segundos ocorridos durante uma das nossas viagens sem destino determinado. Já entardecia quando entrámos na estrada que se desenrolava ao longo da Costa Vicentina e percorremo-la à velocidade ideal – achava Bia uma excelente condutora que, como eu, desfrutava as viagens em si, sentindo-se desconfortável a velocidades excessivas. Estávamos completamente cobertos pelo manto de tons avermelhados com que o Sol poente aconchegava a paisagem, quando as colunas do carro soltaram toda a veemência da “Pink Steam”, dos Sonic Youth, e tudo o que se seguiu no decorrer da música pareceu resumir as nossas vidas. Conversávamos incessantemente desde o início da viagem e, naquele momento, sustivemos suavemente todas as nossas palavras até ao final da melodia. Na realidade, não estávamos concentrados na música, ela estava concentrada em nós e no carro e na praia e na planície à nossa frente. Tínhamos sido, pura e simplesmente, seduzidos por ela e esmagados pela sua torrente impetuosa. Acendi um cigarro e encostei-me para o lado observando a Bia enquanto ela conduzia. Estava no local certo, à hora certa, com a pessoa certa e a música certa. Naquele momento, para mim, aquele velho bólide era o único a circular no Mundo, transportando as duas últimas pessoas da Terra. Bia alternava a sua posição consoante a toada dos acordes, dirigindo aleatoriamente um rápido e cúmplice olhar para mim. Curvava-se para a frente, junto ao volante, de uma forma felina, reclinava-se majestosamente no banco, tirava-me o cigarro na mão e dava umas baforadas, sempre movendo a cabeça de acordo com o ritmo. Não conseguia tirar os olhos dela, estava tudo demasiado perfeito e eu, extasiado, não queria perder um segundo daquilo. A obra de Thurston Moore e seus compinchas tinha-se apoderado de nós, deixando-me indefeso, sem conseguir pensar em nada senão na minha Bia. A minha Bia durante estes avassaladores minutos, que nos deixavam a existência para desbravar e o desejo de que esta viagem nunca acabasse, decorrendo sempre pelo nosso silêncio gritante onde as palavras são completamente desnecessárias. Parecia o que os supostos entendidos sempre me descreveram como tântrico. Os elementos sonoros eram mantidos cativos, voando harmoniosamente, ascendendo e descendendo na sua perfeição e, quando os quatro membros do grupo ameaçavam libertá-los, entregá-los à sua própria explosão, dirigiam-nos de volta ao seu constante estado sublime. Éramos ambos esse som, sentíamo-lo e ele sentia-nos a nós. Então Moore decidiu cantar para nós e só para nós.

I just come by to run you over

I just come by to see you quiver

You can come you can slip inside babe

Killer eyes and a burning heart babe

Don’t you know you need no other

I’m the man who loves your mother

Open up your arms to me, girl
Let me feel your wild heart beat, girl
Sweet lips, flowers and cream
Deep in love, surrender pink steam

Deep in love, you need no other
Deep in love, your lonely lover

I feel your wild heart beat
Lonely lover
Open up to me
Lonely mother
Your sweet lips are mine

Like flowers and cream
Killer, killer eyes
Surrender pink steam

Um sorriso malicioso brotou pronto da face de Bia quando Moore proferiu «Killer eyes and a burning heart babe» e, enquanto eu observava o seu perfil, fixei-me nos seus caninos, que quase brilhavam. Encostada para trás no assento, dominava a estrada, dirigindo-me o seu olhar matador, que nunca antes me deixara escapar. Era esta a música. A música que esperamos, a dada altura das nossas vidas, que intervenha, porque todos temos a banda sonora que acompanha a nossa existência, seja ela composta pela mais profunda das depressões ou a mais eufórica das alegrias. Esta banda sonora tinha encontrado o seu auge.




quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Limpando as teias de aranha: primeiro post de 2008

«Functionless art is simply tolerated vandalism...
...We are the vandals.»

Type 0 Negative